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15 de setembro de 2018

Sobre uma lembrança tão bela


     Ontem eu esbarrei sem querer em uma canção, e como num flash atravessei anos e anos contra o tempo e me vi ainda na adolescência. Um exato momento que traz junto com um sorriso doce, algumas lágrimas que não se definem como tristeza ou saudade...talvez sejam as duas lutando por um maior espaço, mas eu nunca sei quem vence.
     A canção inicia com leves notas de piano. A doçura de um toque que se confunde quando lembro de você cantando a mesma canção com seu jeito brincalhão e debochado, tentando lançar um CD pelo ar, entoando "Voe por todo o mar e volte aqui"...eu ri. Você sempre me fazia rir e como isso era bom!
     Acidentalmente você foi o meu primeiro namorado, e sim, você errou, pois deveríamos ser, desde sempre, os melhores amigos. Mas isso não tardou a acontecer. Primeiro veio o término, a mágoa, aos poucos entendemos que devíamos seguir nossos caminhos, mas sem precisar virar o rosto ou desejar o mal um ao outro. E assim a nossa amizade começou. Adorávamos conversar e rir, sempre de, e por qualquer coisa.
     O tempo passou, os anos corriam e fomos crescendo, tendo outros namoros e até uma filha você teve. Lembro que se mudou não sei para onde, mas sempre que vinha aqui ver a sua menina, passava primeiro na minha casa. Ah, eu não quero nem lembrar da ocasião em que você cismou em colocar o nome dela com o mesmo nome que sonhávamos em colocar na "nossa primogênita"...quando a gente é novo, tudo é motivo pra confusão né...quanta bobagem.
     De repente você foi mudando, andando com pessoas diferentes, rindo menos, conversando menos, aparecendo muito pouco aqui. Me disseram que estava se envolvendo com pessoas erradas...fazendo coisas erradas e até hoje eu não entendo o motivo disso tudo. Juro que não entendo. Lembrei agora da noite em que eu estava na beira da rua perto da casa da minha avó, e vi o carro de um primo seu passar, e do nada, no banco de trás, que não tinha ninguém, surgiu aos poucos o seu rosto, e um aceno rápido...fiquei bastante confusa neste dia, mas nunca procurei saber os reais motivos que te afastavam daqui.
     Um dia minha irmã mais velha ligou pra minha casa, eu atendi e ela disse: Binha, tudo bem? Você está sabendo que mataram o A....? Eu, que sempre fui boba, disse que não e lancei a imagem em outra pessoa, em um primo com o mesmo nome. Corri até a minha mãe e perguntei se ela sabia do ocorrido, e ela me perguntou se eu tinha certeza de quem era...quando ela me perguntou, aí que eu lembrei de você e fiquei em choque. Minha mãe foi até à rua averiguar a notícia e no mesmo lugar que ela me deixou eu fiquei. Parada, travada do lado de uma árvore com o sol da tarde batendo no meu rosto, mas eu não estava ali...não podia ser...não podia. O telefone tocou de novo...era a minha irmã novamente querendo saber se era mesmo verdade, e aí sim, eu tive a certeza de que ela se referia a você. Mesmo com tantos anos a fio tendo passado, eu custo a conseguir me expressar sobre isso. Eu custo entender.
     Sentei na minha cama e lembrei da última vez que você veio me visitar. Pouco falava, apenas me observava, parecendo tão cansado e eu, insistentemente tentava puxar uma conversa, uma brincadeira que fosse e nada. Estranhamente você deitou na minha cama, e eu não entendi, mas talvez você estivesse procurando um lugar de paz. Estivesse tentando entender os motivos de ter ido por um caminho que não ia dar em nada de bom e a minha casa sempre foi o seu alento, onde você sempre era bem recebido...Num susto você se levantou e disse que precisava ir. E foi. No dia do enterro da minha avó eu me lembro que você passou por aqui, mas eu não pude te dar a atenção necessária e logo você se foi. Seria a nossa última vez juntos.
     Minha mãe voltou com a confirmação da notícia. Passei o resto do dia em silêncio ainda tentando assimilar o ocorrido. Fui até a casa da Michelle porque precisava conversar, mas juro, ainda não tinha entendido nada...na manhã seguinte, assim que minha mãe me viu despertar, puxou uma cadeira e sentou do meu lado. Eu não queria conversar, portanto virei o rosto pra parede, mas ela não deixou de falar. Ainda lembro e me assusto com a calma e o discernimento das palavras que ela usou...era algo assim: -Filha, hoje é o enterro do A...e eu sei que você já disse que não vai, mas você precisa ir. Eu vou te explicar o motivo. Ele gostava demais de você, e não importava se fazia sol ou chuva, se ele viesse aqui, a primeira pessoa que ele queria ver era você. Tenho certeza que até a filha dele ele deixou de ver, mas você minha filha, ele nunca deixava. Ele era o seu amigo e é em nome dessa amizade que você precisa ir lá.
     Eu me levantei, troquei a roupa e fui com meu irmão mais novo, mas eu não pude ir ver o seu corpo...meu irmão segurou a minha mão e fez força, mas eu não fui, eu não podia e você sabe o motivo. Você sabe que se fosse eu no seu lugar, você também não iria...ia preferir para sempre guardar a lembrança, na memória de todos os milhares momentos em que juntos sorrimos e brincamos. E é isso que eu guardo até hoje. O seu sorriso, aquele abraço apertado que só nós sabíamos dar. A cumplicidade, o carinho, o cuidado. Perdi as contas de quantas vezes o cachorro latia e eu corria pra ver se era você que estava chegando...quanta saudade.
     E ontem essa música me fez voltar no tempo e lembrar do seu sorriso e das milhões de vezes que você me fez feliz. Você me fez muito feliz! Por isso hoje você é uma lembrança boa e me faz perceber como a vida é frágil. Com o desenrolar da canção em seu refrão, o vocalista entoava a seguinte frase: Vento traz você de novo...mas nem Deus, nem o vento, nada pode te trazer de volta, apenas a minha lembrança do meu melhor amigo, e acho que foi você que me fez ter preferência à amizades masculinas...mas nem uma foi como a tua. Nunca será. O seu espaço no meu coração nunca será ocupado e espero que onde quer que esteja, você tenha levado meu amor contigo.
     Até hoje não entendi sua partida, mas sei que Deus não erra. Obrigada por me amar tanto, e é nessa hora que eu sou grata, porque tantas vezes reclamamos que ninguém gosta da gente...eu nunca pude reclamar disto. Ainda vou escrever uma crônica linda sobre você. Hoje eu só queria mesmo desabafar, falar sobre essa lembrança tão bela...o amor que vem de graça.
Só pra fechar esse refrão eu digo:

(Você) mudou a minha vida e mais...Pedi ao vento pra trazer você aqui
Morando nos meus sonhos e na minha memória...
Pedi ao vento pra trazer você pra mim...

https://www.youtube.com/watch?v=fAQj1gj49SI

Te amo eternamente, meu primeiro, grande e fiel amigo.

Para A.L.Z.
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